sábado, 18 de setembro de 2010

Pratos simples


macarrao.jpg
(Macarrão com Carne Guisada)
Consta-me que eu, enquanto criança, era difícil para comer. Nunca tinha apetite. Fui submetido à tortura do óleo de fígado de bacalhau, depois aliviado com a chegada do Iodarsolo. Lembro-me de ouvir as perguntas ao médico sobre a minha falta de apetite e se estaria doente até que, pelos oito anos, admitiram que poderia sofrer de raquitismo. Assustados, os meus Pais, rumaram comigo ao Porto consultar um especialista. É a memória da minha primeira grande cidade. Guardo algumas lembranças dessa consulta que parecia uma coisa doutro planeta. Na rua de Santa Catarina, um prédio antigo e sombrio. O consultório parecia-me a sala de um mágico, associando-o a livros de histórias. Aparelhos e pêndulos, a consulta parecia não terminar, até que, por fim, e com voz autoritária o médico diz: “O garoto não tem nada, precisa é de campo e liberdade…”. Depois, foram dadas instruções para passar as férias de Verão em local de alta altitude, e que comesse quando tivesse vontade. Meus Pais encontraram a solução mais rápida. Fomos para a aldeia de Montesinho passar os meses de Julho e Agosto, regressando para as Festas da Cidade, em honra da padroeira N. Sra das Graças, em Bragança. Por esse tempo apenas tinha mais dois irmãos e, para as férias serem mais animadas, também foram alguns primos engrossar o grupo. Ora, estas surpreendentes férias marcaram para sempre a minha memória de cheiros e sabores culinários.
A aldeia recebeu-nos à boa maneira transmontana. Portas abertas e mesas fartas. Não corríamos o perigo de nos perdermos ou atravessarmos uma rua inadvertidamente ou podermos ser atropelados, pois carros não havia. A minha primeira surpresa alimentar, e que perdura, foram umas “bolas de chicha gorda”. Ainda hoje me fazem salivar. Eram uns pães arredondados de farinha de centeio, que eram recheados com pedaços de toucinho, que a exemplo dos folares, a melhor parte reside na massa que cozeu junto à gordura, que a mantém humedecida, e muito gostosa.
Lembro-me de acompanhar os trabalhadores do campo e de querer partilhar as suas refeições. A comida fora de casa sabia-me melhor. Ora é a partir destas férias que para tranquilidade dos meus Pais eu manifesto vontade de comer. Correr pelo campo e assistir às actividades agrícolas abria-me o apetite. A minha Mãe lá me deixava espraiar mas entregava a alguém do grupo uma trouxinha com umas merendas que imaginava me poderiam apetecer. Com a volta destas merendas intactas, a minha Mãe deixou então de me fazer o farnel. Eu queria, efectivamente, comer a comida que era transportada por uma mula e que alimentava todos os que trabalhavam. Houve dois pratos que me influenciaram para o futuro: batatas guisadas com bacalhau e macarrão com carne. Quanto ao primeiro, trata-se de um simples guisado com as batatas às rodelas, muita cebola e tomate, bacalhau aos pedaços, muitos deles ainda com pele, e feijão verde. Por vezes, como prémio, também havia pimentos verdes ou vermelhos. Que tinha de especial para mim esta receita? Primeiro, possivelmente o ambiente. Depois, as batatas que ficavam muito bem cozidas naquele guisado, que era bem temperado, absorviam aquele saboroso molho. Depois, ouvi chamar a esta receita “Bacalhau com Batatas à Espanhola” e, curiosamente, vou encontrar uma receita semelhante no receituário das Reverendas Madres Agustinas do Mosteiro da Madre de Deus, em Burgos. De certo para dias comuns ou de jejum de carnes. O meu apetite evidenciou-se depois de sair de Bragança e, sempre que regressava de férias, no primeiro almoço era sempre esta a receita com grande fastio dos meus irmãos que reclamavam que por eu chegar eram obrigados a comer aquele prato. Ainda hoje, quando posso, repito os gestos de miúdo a fazer papinha com as batatas ajudado pelo garfo.
A outra receita, macarrão com carne, que sempre associo às ceifas, não me marcou como a anterior. No entanto, e possivelmente pelo tempo que o macarrão ficava na panela, a massa ficava muito cozida. Com o passar dos anos habituei-me a comer as massas “al dente” ou “al punto”. Excepção para o macarrão, que tem que ser sempre bem cozido e que associo também aos nossos famosos ranchos. Recentemente, participei no Capítulo da Primavera / Verão da Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro e muito contente fiquei com a receita de carne escolhida: “Macarrão com guisado de carne Maronesa”. Na minha mesa, a minha amiga Graça Morais exclamou de imediato: “Isto é a comida das ceifas”. Pois é, e foi muito bem escolhida, embora o objectivo fosse mostrar uma forma popular, e boa, de utilizar as partes menos nobres de um vitelo maronês. Comi e fotografei, e lembrei-me das minhas férias em Montesinho!
Costumo afirmar que só há dois tipos de comida: a boa e a má. Depois, da boa podemos ter a popular ou a palaciana, nacional ou estrangeira, nova, molecular, surpreendente, de autor… o que importa é que seja boa, bem confeccionada e bem apresentada. E depois, experiências por que não passei em Montesinho, as refeições sabem melhor acompanhadas com vinho. Mas aprendam a beber com moderação.
© Virgílio Nogueiro Gomes

Nenhum comentário: